O que tem de político esse carnaval que toma as ruas de Belo Horizonte?

Como muitos sabem, a história do carnaval de rua de Belo Horizonte começou a se (re)escrever em 2009 e, desde então, vem ganhando e transbordando contornos.

De alguns poucos blocos, com pequenas baterias e nenhuma estrutura, a uma mobilização que promete, mais uma vez, movimentar milhões de pessoas e que desperta interesse por parte do poder público de se apropriar da criação — que, sim, é popular e espontânea.

Em cinco anos, é inegável que a festa se transformou e não é mais apenas uma, mas várias.

“O que temos hoje é uma profusão, uma explosão de festas. É impossível querer criar uma narrativa do carnaval de Belo Horizonte. Acho que ele não tem uma cara, não é uma coisa definida, ele está num processo de construção coletiva. E há uma diversidade muito grande”, introduz Rafael Barros, antropólogo e um dos fundadores dos blocos Filhos de Tchá-Tchá e Tico Tico Serra Copo.

Não à toa, tudo recomeçou na mesma época em que a Praça da Estação virou Praia da Estação — em resposta a um decreto sem sentido do prefeito Márcio Lacerda (PSB-MG) que queria proibir festas na praça. E foi aí que muitas pessoas começaram a entender — na prática — que estar na rua, festejando a vida e o encontro na cidade, pode ser um ato político.

É exatamente dessa vontade de vivenciar e compartilhar o espaço público, misturando os corpos e abrindo o olhar para a diversidade, que o carnaval de Belo Horizonte ressurgiu. Em uma cidade que se fecha e segrega com grades e cacetetes, descobrir o outro e criar novas formas de convivência é um ato político transformador.

Foto: Flávia Mafra

E tem a festa. Carnaval é bagunça, é música, é suspender uma determinada ordem (ainda que apenas temporariamente) e se libertar de amarras. Com respeito, mas sem moderação.

“Desde a antiguidade que o carnaval é esse lugar das inversões, da desconstrução das relações de poder constituídas. É o lugar da sátira, do deboche, do escracho. Carnaval é uma apropriação popular na qual não existe separação entre o público e o artista: todo mundo é protagonista”, afirma Rafael Barros.

Foto: Flávia Mafra

Mas o carnaval em si não é necessariamente transformador. E isto pode ser comprovado com um simples exemplo, entre vários possíveis: o homem que se veste de mulher, mas continua sendo machista e homofóbico.

“Quando a gente fala que o carnaval de BH é político, alguns entendem que temos uma tese política que seria comprovada pelo carnaval, mas na verdade é o contrário. Eu vejo o carnaval como ponto de partida. É a hora de construção de pautas e experiências comuns à vida em comunidade, de afeto em relação à cidade”, afirma o historiador Guto Borges.

Guto, que também é músico e folião de vários carnavais, fez parte da movimentação que gerou blocos como o Mamá na Vaca e o Peixoto. Foi uma aposta em um caminho desconhecido, mas o clima político e cultural da cidade sugeria que era possível (e preciso) experimentar as ruas de outras formas.

“Hoje, existem diversos tipos de blocos e intenções. O carnaval de BH começa a ser povoado, inclusive, por imagens pouco criativas de outros carnavais, como essa do camarote. O pior é que não é um camarote de nada, é simplesmente uma citação a um imaginário exclusivista”, aponta Guto Borges.

De quem é a festa?

No princípio, o carnaval foi mal recebido pelo poder público. Essa relação conflituosa sempre alimentou a força criativa do carnaval de Belo Horizonte. As marchinhas são fortes exemplos: a recente tentativa da prefeitura de proibir o uso de isopores e churrasqueira nas ruas levou à criação da música “Prefeito, libera o cooler”; a denúncia de uso indevido da verba pública pelo vereador Léo Burguês inspirou “Coxinha da Madrasta”, um helicóptero com 500 toneladas de cocaína — que até hoje ninguém sabe de quem é (sério mesmo?) — resultou na divertida “Baile do Pó Royal”.

Mas os confrontos não foram apenas poéticos: em 2011 e 2012, fiscais da prefeitura coagiram comerciantes dos bairros Santa Tereza e Floresta para eles não receberem os foliões. Na mesma época, a tropa de choque chegou a atirar bombas no Bloco da Praia em plena Afonso Pena. E esses são apenas alguns exemplos da truculência adotada pela Prefeitura e a PMMG contra o carnaval.

Apesar dos episódios de repressão continuarem acontecendo até hoje (na quinta-feira pré-carnaval o pau cantou no Bloco da Bicicletinha), a partir do carnaval de 2012, a coisa começou a virar. A PBH percebeu o potencial do carnaval e passou a tentar capitalizar com ele, utilizando a folia na campanha de reeleição de Márcio Lacerda e buscando patrocinadores oficiais para o “evento da prefeitura”.

“A Prefeitura começou a vender o que não tem. O carnaval não é propriedade de uma gestão, não é propriedade do Estado e sim da sociedade civil. E o papel de sociedade civil é esse: ser pulsante, criativa, original, seguir viva. É o Estado que tem que atender às demandas da sociedade e não o contrário”, afirma Guto Borges.

Foto: Flávia Mafra

Nesse meio tempo, as mais diversas pautas políticas afloram, oficialmente ou não, em novos blocos: o Pula Catraca levanta a bandeira do transporte público acessível e de qualidade como forma de democratizar a cidade; há blocos que reafirmam os direitos da população LGBT e o empoderamento das mulheres, como o Garotas Solteiras, outros exaltam o orgulho negro, combatendo o racismo, como o Bloco Afro Magia Negra e Dread Locko.

Alguns blocos, como o Então, Brilha! e Chama o Síndico, criam outros sentidos para o território impessoal de ruas como Guaicurus, Afonso Pena e Aarão Reis. Outros, como o Tico Tico Serra Copo, deslocam para as periferias, adentrando o coração de bairros mais distantes do centro. E, claro, existem aqueles que querem apenas festejar pela cidade.

Muitos blocos não assumem nenhum discurso, mas dizem: a graça do nosso carnaval é que é uma festa na rua, democrática. Mesmo quem não participa internamente do debate percebe isto como sendo o ponto principal. Uma vitória dos últimos anos” , defende Guto Borges.

No dia 5 de fevereiro, o carnaval de rua de Belo Horizonte começou um novo capítulo de sua história. E a gente segue por aqui contando fragmentos dessa odisséia-foliã-contemporânea.